Hoje, publicamos outro fragmento da tese de João Rocha, intitulada A escrita dos dias: a ética da paisagem em Maria Gabriela Llansol, defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG.
Brasília, 29 de setembro de 2014
Comecei a ler o livro Rés: o livro das contaminações, do Erick e da Maraíza, e já posso dizer que alguns versos me contaminaram. Deixo aqui o rastro dessa experiência de tocar a pele do outro:
o nome ambíguo do amor
crescia-lhes por baixo da pele:
nos ramos, nos tumores – vermelhos.[1]
sibila, no cerne, a palavra
lú-ci-fer:
aferrado ao nada, a partícula desata.[2]
Talvez, esses versos entrem como epígrafes de alguma partícula.
Talvez, eles fiquem aqui guardados com minha solidão.
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Há semanas, ando com esta frase que disse a um aluno: “o Homem criou um mundo incompatível para sua existência”. Lendo-a, agora, poderia dizê-la de uma outra maneira: “o Homem criou um mundo incompatível com a sua natureza”.
Penso que a próxima partícula trabalhará essa questão.
_______ Como o Homem pode voltar a integrar a natureza? Como a escrita e a leitura podem ajudá-lo nessa tarefa? Seria isso possível?
São essas as perguntas que me coloco enquanto vejo, ao longe, o rosto humano e animal de “Meu tio Iuaretê”. Talvez, no litoral desse rosto, encontre alguma passagem para o Homem que virá – que terá de vir.
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(Colóquio Cada vez, o impossível: Derrida 10 anos depois)[3]
Acabo de almoçar e encontro uma cadeira ao pé de uma árvore. Sento-me. Qualquer sombra, em meio ao clima desértico desta cidade, é um oásis. Também fora um oásis a fala final de Spivak, no Colóquio. Ela nos trouxe uma pergunta, de Derrida, que, no meio da confusão das traduções, escutei assim: “Quem vota no inconsciente”?
Segundo ela, esta é a pergunta que deve ser feita para pensarmos como o Estado pode se desvencilhar do totalitarismo. Mesmo sabendo que um total desvencilhamento é impossível. Tal pergunta liga-se, como uma linha ata o infinito ao infinito, o fim e o começo de sua fala.
No começo, ela dedica seu texto aos estudantes de Hong Kong que, mesmo sabendo impossível, protestam contra o regime totalitário sob o qual são governados. Ela também lembra as manifestações de junho de 2013, no Brasil. Leio sua pergunta – “Quem vota no inconsciente?” – como uma direção que me faz pensar, insistentemente, em uma ética que, sustentando o impossível, lança no mundo a possibilidade de um final feliz. Mas não sem dor, não sem amor. Mesmo sabendo que o homem criou, e ainda continua criando, um mundo incompatível para si mesmo. Mesmo sabendo que o homem é o único animal que se esforça, sem saber, na construção de um mundo que o destruirá. Votar no inconsciente parece ser a possibilidade, o vislumbre da desconstrução, mesmo que ela aconteça em pontos precisos, ínfimos, desse mundo construído pelo homem e que o repele. Votar no inconsciente parece ser a possibilidade de construir oásis em meio às ruínas da destruição. Votar no inconsciente parece ser, enfim, caminhar no campo da esperança, no campo da vida.
Belo Horizonte, 8 de outubro de 2014
emotional landscapes
they puzzle me
the riddle gets solved
and you push me up to this:
state of emergency: how beautiful to be
state of emergency: is where I want to be.[4]
Havia muito tempo que não escutava esse cd da Björk. Quando ouvi os versos que acabo de transcrever, para não esquecê-los, fui assaltado por uma certa emergência: anotar aquilo que não pode ser perdido. A beleza e a tensão de um estado de emergência é o que da voz de Björk me toca.
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Escrever é um estado de emergência.
Ler também.
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As paisagens nos transportam.
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O estado de emergência que chega pela voz de Björk é o da paisagem. Emotional landscapes, ela canta. Mas também escuto aí o mesmo estado de emergência do desejo.
(encontro aqui um litoral entre a ética da paisagem e a ética da psicanálise?)
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Ouço, mais uma vez, a canção Jóga e penso estar próximo de uma miragem. Isso não significa estar distante da verdade, e, sim, que a paisagem constrói inúmeras verdades que se desfazem no ar e suas fagulhas flutuam, errantes viajantes, pela delicadeza e sutiliza da voz, do grão da voz.
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Dou outra volta, mas pareço chegar ao mesmo lugar, e penso que a paisagem nos coloca em um estado de emergência______ ela nos mostra, continuamente, que estamos construindo um mundo incompatível para nossa existência e para tantas outras formas de vida. Os dias estão estranhos. Na semana passada, houve um tornado em Brasília – só pude sentir a força do vento, já enfraquecida, que lançou folhas, insetos e lixo para dentro do auditório onde todos se concentravam em torno do texto de Derrida.
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Estamos, sim, em estado de emergência.
Nesse lugar, escreve-se,
atravessa-se o medo,
com os pés inteiros na paisagem
e no desejo.
[1] COSTA; LABANCA. Rés: (livro das contaminações). 2014, p. 13.
[2] COSTA; LABANCA. Rés: (livro das contaminações). 2014, p. 39.
[3] Colóquio Internacional Escritura: linguagem e pensamento – cada vez, o impossível: Derrida 10 anos depois, 5º, Brasília, UnB, 29 de setembro a 3 de outubro de 2014.
[4]BJÖRK. Jóga (excerto). In: ________. Homogenic. Brasil: Polygram, 1997. CD.